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sábado, julho 19, 2025

O legado do "Snyderverse"


O legado do "Snydervese" 

O universo de filmes de Zack Snyder, frequentemente chamado de “Snyderverse”, ocupa um lugar único e complexo na história do cinema de super-heróis. Mais do que uma simples sequência de filmes, ele representa uma visão autoral, artística e ousada dentro de um gênero frequentemente dominado por fórmulas prontas e interesses comerciais. Snyder trouxe um estilo visual e temático distinto ao Universo DC, retratando seus heróis não como aventureiros simplificados, mas como figuras mitológicas lidando com identidade, trauma e dilemas filosóficos.

A base do “Snyderverse” começou com O Homem de Aço (Man of Steel, 2013), uma reinicialização do Super-Homem que redefiniu o personagem para a era moderna. Este filme marcou uma colaboração crucial entre Zack Snyder e Christopher Nolan, que atuou como produtor e coautor da história ao lado de David S. Goyer, o roteirista, diretor e produtor norte-americano conhecido por seu trabalho em adaptações de quadrinhos e ficção científica de tom sombrio e sofisticado. Um dos seus primeiros grandes sucessos foi Dark City (1998), que coescreveu com Alex Proyas, um filme cult de ficção científica noir que influenciou profundamente obras posteriores como The Matrix.

Goyer também foi o principal roteirista da trilogia Blade (1998–2004), estrelada por Wesley Snipes, que teve papel essencial na legitimação dos filmes de super-heróis voltados para um público adulto antes mesmo do surgimento do Universo Cinematográfico Marvel. Essas obras demonstram a habilidade de Goyer em criar mundos densos, sombrios e estilizados, combinando ação e filosofia com tramas envolventes, características que ele levaria também para os filmes do Batman dirigidos por Christopher Nolan.

Vindo do sucesso de crítica e público da trilogia O Cavaleiro das Trevas, Nolan trouxe não apenas sua sensibilidade criativa, mas também sua credibilidade na indústria para o projeto. Sua influência ajudou a ancorar o Super-Homem em um mundo mais realista e emocionalmente ressonante, conferindo um nível de prestígio e rigor narrativo que elevou o filme para além de uma típica história de origem. Snyder, por sua vez, pegou os alicerces temáticos de Nolan e os traduziu em uma visão cinematográfica marcada pela reverência, pelo isolamento e pela complexidade moral.

Com a expansão do universo em Batman vs Superman: A Origem da Justiça (Batman v Superman: Dawn of Justice, 2016), as ambições narrativas se tornaram ainda mais audaciosas. Com roteiro escrito por Chris Terrio, roteirista vencedor do Oscar por Argo. A participação de Terrio trouxe uma abordagem mais estruturada e literária ao roteiro, recheando o filme de simbolismo, subtextos políticos e conflitos morais. Batman vs Superman explorou as consequências do poder sem controle, os perigos do medo e o peso do legado, posicionando seu confronto central como um embate de ideologias, e não somente uma luta física. Nolan permaneceu creditado como produtor executivo, com participação criativa mínima, dando espaço para Snyder e Terrio conduzirem a narrativa.

Apesar de dividirem a crítica, esses filmes conquistaram um público massivo. O Homem de Aço arrecadou mais de 660 milhões de dólares no mundo todo, enquanto Batman vs Superman ultrapassou os 870 milhões.

Em 2017, enquanto Zack Snyder enfrentava a devastadora perda de sua filha Autumn por suicídio, os executivos da Warner Bros., incluindo Walter Hamada e Geoff Johns, aproveitaram-se da tragédia para afastá-lo de Liga da Justiça. Embora o motivo oficial fosse seu luto, diversas fontes indicam que a decisão já estava tomada nos bastidores devido à recepção dividida de Batman vs Superman. Em vez de oferecer apoio, os produtores agiram com frieza e cálculo, usando o momento de vulnerabilidade extrema de Snyder como pretexto para substituí-lo e remodelar o filme de acordo com interesses comerciais. Joss Whedon foi então trazido para refilmar e alterar profundamente a obra, ignorando a visão autoral de Snyder. A forma como Hamada, Johns e outros lidaram com a situação foi amplamente criticada como um exemplo flagrante de oportunismo e desumanidade por parte da indústria, trocando integridade artística e empatia por controle corporativo e lucro fácil.

O filme Liga da Justiça, finalizado por Joss Whedon após a saída forçada de Zack Snyder, é amplamente considerado um fracasso artístico e narrativo. O resultado final é uma obra desconexa, marcada por um tom instável que tenta mesclar comédia leve com uma trama originalmente densa e épica, resultando em uma experiência superficial e sem coesão. As refilmagens apressadas, o uso excessivo de efeitos visuais inacabados e a presença de diálogos forçados e piadas deslocadas contribuíram para enfraquecer os personagens e banalizar seus conflitos. A mutilação da visão original de Snyder em favor de um produto mais “acessível” acabou esvaziando o impacto dramático da história e alienando tanto o público quanto os fãs. A tentativa de imitar o estilo colorido e infantil da Marvel, sem compreender sua essência revelou-se desastrosa, deixando Liga da Justiça de Whedon como um símbolo da interferência corporativa mal calculada e da mediocridade imposta por comitês executivos.

Dessa forma, a culminação da trilogia de Snyder só veria com Liga da Justiça de Zack Snyder (Zack Snyder’s Justice League, 2021), um épico de quatro horas que restaurou sua visão original após sua saída conturbada da versão lançada nos cinemas em 2017, quando o roteiro de Chris Terrio retornou e desenvolvendo completamente arcos emocionais mais coerentes, especialmente para personagens como o Ciborgue e Flash, que haviam sido apagados da versão de cinema.

O caminho até esse lançamento é uma história à parte. Quando Snyder se afastou da produção e a Warner Bros. lançou a versão grotesca de Whedon, surgiu um movimento popular massivo em resposta, o #ReleaseTheSnyderCut. Impulsionado por fãs apaixonados, celebridades e pelo próprio Snyder, o movimento conseguiu convencer a Warner Bros. a financiar e lançar a versão original na HBO Max. Após assistirem à versão de Whedon, Nolan e a produtora Deborah Snyder aconselharam Zack a não a ver, considerando a experiência emocionalmente devastadora. Embora Nolan já não estivesse envolvido diretamente, ele apoiou Snyder nos bastidores.

Liga da Justiça de Zack Snyder tornou-se um marco na história do entretenimento, não apenas por sua qualidade, mas pelo que simbolizou: o poder do engajamento dos fãs, o valor da integridade criativa e o potencial das plataformas de streaming em resgatar obras comprometidas. Apesar de não ter estreado nos cinemas, foi o título mais assistido da HBO Max em seu lançamento e foi amplamente reconhecido como superior à versão de 2017.

Mais do que seu conteúdo narrativo, o “Snyderverse” desafiou as convenções do gênero de super-heróis. Teve a ousadia de levar seus personagens a sério, às vezes até demais, e os tratou como figuras mitológicas em um mundo moralmente ambíguo. O Super-Homem foi retratado como um messias relutante; o Batman, como um vigilante envelhecido e traumatizado em busca de redenção; e Mulher-Maravilha, Aquaman e Ciborgue ganharam uma dignidade e profundidade mais próximas da fantasia épica do que da ação convencional.

Embora a Warner Bros. tenha eventualmente se afastado da rota traçada por Snyder e seguido uma abordagem mais fragmentada, sua influência permaneceu impregnada no DNA dos filmes posteriores da DC. Suas escolhas de elenco, o tom e a linguagem visual moldaram as versões de Aquaman, Flash e principalmente o sucesso Mulher-Maravilha que o público abraçou esses filmes solo. E talvez o mais importante: os filmes de Snyder provaram que o gênero de super-heróis pode aspirar à profundidade temática e à ressonância mitológica, e não apenas ao entretenimento leve e cheio de piadas.

Em paralelo, o sucesso estrondoso de crítica e público de Coringa (Joker, 2019), dirigido por Todd Phillips, não apenas surpreendeu o mercado como também desafiou a lógica dominante dos filmes de super-heróis. Ao invés de seguir a fórmula padrão das franquias, Phillips apostou numa abordagem sombria, introspectiva e autoral, explorando temas como doença mental, desigualdade social e alienação urbana. A narrativa, centrada num personagem perturbado e tragicamente humano, evocou a linguagem do cinema de autor dos anos 1970, e encontrou eco entre plateias globais. O tom sombrio, a densidade psicológica e a estética realista de Coringa remetem diretamente ao estilo visual e temático cultivado por Zack Snyder no universo DC, especialmente em Batman vs Superman, onde heróis são retratados como figuras mitológicas inseridas num mundo brutal e complexo. Ainda que os estilos sejam distintos, ambos compartilham a ambição de levar os quadrinhos para territórios adultos e provocativos. Distinto do besteirol típico da Marvel.

A influência de Martin Scorsese em Coringa é central para compreender sua profundidade estética e narrativa. Embora ele tenha se afastado formalmente da produção, Scorsese atuou como mentor de Phillips, e sua obra, em especial Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982), moldou diretamente a construção do protagonista vivido por Joaquin Phoenix. Além disso, a presença de sua funcionária e produtora Emma Tillinger Koskoff e do amigo Robert De Niro no elenco e na produção reforçam esse elo criativo, funcionando como ponte viva entre os dois cineastas. A equipe de Coringa contou com colaboradores próximos a Scorsese, o que ajudou a transpor para o universo dos quadrinhos a densidade moral e o realismo cru típicos do cineasta nova-iorquino. É importante lembrar que o próprio Scorsese tem sido um crítico feroz da Marvel, argumentando que seus filmes são “parques de diversões”, desprovidos de risco artístico ou substância dramática. Coringa, nesse contexto, funciona como uma resposta, um exemplo de que filmes de quadrinhos podem e devem carregar complexidade e provocar reflexão, quando tratados com liberdade autoral.

Esse mesmo espírito de ousadia já havia sido cultivado por Zack Snyder em sua visão do universo DC, ainda que sem o reconhecimento imediato da crítica. Como Phillips, Snyder sempre tratou o material de origem com seriedade, apostando em dilemas morais, questões filosóficas e uma estética visual carregada, quase operística. A rejeição inicial de sua abordagem por parte da Warner e o subsequente sucesso de Coringa escancararam uma contradição dentro do estúdio: enquanto um filme sombrio e autoral arrecadava mais de um bilhão de dólares e recebia o Leão de Ouro em Veneza, além dois Oscars em indicações ao prêmio máxima do cinema mundial, o mesmo tipo de visão havia sido rejeitada poucos anos antes, quando vinha de Snyder. Assim, o sucesso de crítica e público de Coringa reafirmou o valor de uma abordagem adulta aos quadrinhos e, paradoxalmente, consolidou o legado estético e temático de Zack Snyder como um precursor subestimado dessa nova fase do cinema baseado em quadrinhos.

O valor do “Snyderverse” reside não apenas em estilo cinematográfico distinto, mas no que ele representa: a convergência entre visão autoral e espetáculo blockbuster; o impacto de vozes colaborativas como as de Nolan, Terrio e Goyer; e o papel crescente das comunidades de fãs na definição do destino das obras criativas. Seja admirado por sua ambição ou criticado por seus excessos, o universo DC de Zack Snyder redefiniu o que um épico de super-heróis pode ser, e deixa um legado que continuará sendo debatido por muitos anos.

- Fabio Marques, 19 de julho de 2025


quarta-feira, junho 04, 2025

Quando os Intocáveis viram Código: Uma trilha de luz e sombras


Quando os Intocáveis viram Código: Uma trilha de luz e sombras

Nos anos 80, quando a infância ainda era um território indecifrável, eu tinha uma relação quase obsessiva com o cinema. Era um ritual de luz e sombra que me marcava, rever filmes que falavam de mundos sombrios, onde o mal e o bem dançavam um tango silencioso. Filmes como Guerra nas Estrelas, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Caçadores da Arca Perdida, Carrie: A Estranha e Scarface eram meus companheiros fiéis, personagens que, no escuro da sala, ganhavam vida como fantasmas do meu imaginário.

Brian De Palma, com suas imagens afiadas como navalha, foi o segundo nome que aprendi a associar ao poder do cinema, logo depois de Spielberg, aquele mago das telas. Foi com ele que me perdi e me encontrei no cinema de gangsteres. Em uma tarde qualquer de férias, fui ao cinema ver Quando as Metralhadoras Cospem..., um pastiche de Alan Parker com a jovem Jodie Foster. Aquele filme, uma brincadeira séria com o universo dos mafiosos, me fez mergulhar ainda mais fundo nesse labirinto de metralhadoras, intrigas e violência. Jodie ainda se tornaria um fetiche recorrente desse cinéfilo.

Na televisão, vi os gigantes: O Poderoso Chefão, de Coppola, e Era uma Vez na América, de Leone, com aquelas trilhas sonoras marcantes de Nino Rota e Ennio Morricone, que parecia empurrar o tempo para frente e para trás, entre a glória e a ruína.

Eu gravava esses filmes em VHS, fita após fita, revendo-os como se neles buscasse uma resposta para algo que nem sabia formular. Numa quinta, 26 de abril de 1990, que a memória me marcou de vez. Na sessão especial a TV Globo exibiu Intocáveis, o filme de De Palma sobre Eliot Ness e Al Capone, o duelo imortal entre o bem e o mal na Chicago da Lei Seca. Ali, com quinze anos, senti o peso daquela luta, a trilha sonora grandiosa, que lembrava uma ópera urbana em camera lenta em cenas minuciosamente coreografadas. me fez entender que a batalha era mais profunda do que tiros e metralhadoras. Era uma questão de princípios, de justiça, uma disputa que atravessava décadas.

No ano seguinte, no último ano do colegial, a professora Dalila de Inglês nos desafiou a escrever e atuar numa peça de teatro. Eu e alguns colegas criamos Os Tocáveis, uma comédia pastelão, uma paródia mafiosa onde os mafiosos brigavam pelo controle da venda proibida de Baré Cola, refrigerante emblemático dos anos 80. Vestimos sobretudos, chapéus e metralhadoras de brinquedo, encenamos um banho de “sangue” tão engraçado quanto violento, uma mistura dos estilos de Alan Parker e De Palma. Era o humor numa versão gangster, o tom leve que contrabalançava as trevas que tanto admirávamos.

Pouco mais tarde, na universidade, De Palma perderia espaço para Scorsese, que entrou no meu mundo com Os Bons Companheiros e Cassino, mostrando o lado humano e brutal dos mafiosos. Taxi Driver: Motorista de Táxi, virou um dos meus filmes favoritos, Jodie Foster, com a infância destruída, ali novamente.

Depois de me formar em Ciências da Computação, a vida me levou para outro tipo de luta, a do código, da lógica, da urna eletrônica. Comecei a trabalhar no software da urna para o Tribunal Superior Eleitoral, em 1996, na Unisys, e depois na Procomp, em 1998 e 2000. A Procomp, brasileira, foi comprada em 1999 pela americana Diebold, gigante da área de segurança bancária, e numa palestra corporativa ouvi, de novo, os nomes de Eliot Ness e Al Capone.

Ness, descobri, fizera parte do conselho de diretores da Diebold nos anos 40 e 50, logo depois que deixou a Receita Federal. A lembrança do filme Intocáveis voltou, clara, nítida, com aquele duelo eterno entre o certo e o errado. Como se o projeto da urna eletrônica fosse uma continuação daquela guerra, entre o bem e o mal, a ordem e o caos, a justiça e a corrupção. Depois da missão cumprida no projeto do Voto Eletrônico, fui para indústria de Telecom, deixei um pouco do dia a dia de códigos de programação, mas me mantive próximo ao desenvolvimento de software como líder de equipes e gerente de projeto. Percebi em mim o tipo de liderança que Ness exercia naquele grupo de policiais.

Anos depois, numa viagem a São Francisco, visitei a Ilha de Alcatraz, o cárcere onde Capone foi preso por sonegação fiscal, o palácio de pedra onde a lei mostrava sua face impiedosa. Mais alguns anos, na Filadélfia, pisei no Eastern State Penitentiary, o presídio onde ele cumpriu pena por porte ilegal de armas, um lugar frio e silencioso que parecia carregar a sombra do próprio Capone.

E assim, a história que começou nos filmes, nas fitas VHS, nos teatros improvisados, atravessou minha vida, numa trilha de sombras e luzes, de mafiosos e heróis, onde a luta entre o bem e o mal nunca termina, e onde cada projeto que desenvolvo, cada missão de cumpro, de certa forma, um golpe nessa batalha sem fim.