O universo de filmes de Zack Snyder, frequentemente chamado de “Snyderverse”, ocupa um lugar único e complexo na história do cinema de super-heróis. Mais do que uma simples sequência de filmes, ele representa uma visão autoral, artística e ousada dentro de um gênero frequentemente dominado por fórmulas prontas e interesses comerciais. Snyder trouxe um estilo visual e temático distinto ao Universo DC, retratando seus heróis não como aventureiros simplificados, mas como figuras mitológicas lidando com identidade, trauma e dilemas filosóficos.
A base do “Snyderverse”
começou com O Homem de Aço (Man of Steel, 2013), uma
reinicialização do Super-Homem que redefiniu o personagem para a era moderna.
Este filme marcou uma colaboração crucial entre Zack Snyder e Christopher Nolan,
que atuou como produtor e coautor da história ao lado de David S. Goyer, o
roteirista, diretor e produtor norte-americano conhecido por seu trabalho em
adaptações de quadrinhos e ficção científica de tom sombrio e sofisticado. Um
dos seus primeiros grandes sucessos foi Dark City (1998), que coescreveu
com Alex Proyas, um filme cult de ficção científica noir que influenciou
profundamente obras posteriores como The Matrix.
Goyer
também foi o principal roteirista da trilogia Blade (1998–2004),
estrelada por Wesley Snipes, que teve papel essencial na legitimação dos filmes
de super-heróis voltados para um público adulto antes mesmo do surgimento do
Universo Cinematográfico Marvel. Essas obras demonstram a habilidade de Goyer
em criar mundos densos, sombrios e estilizados, combinando ação e filosofia com
tramas envolventes, características que ele levaria também para os filmes do
Batman dirigidos por Christopher Nolan.
Vindo do sucesso de crítica e público da trilogia O Cavaleiro das Trevas,
Nolan trouxe não apenas sua sensibilidade criativa, mas também sua
credibilidade na indústria para o projeto. Sua influência ajudou a ancorar o
Super-Homem em um mundo mais realista e emocionalmente ressonante, conferindo
um nível de prestígio e rigor narrativo que elevou o filme para além de uma
típica história de origem. Snyder, por sua vez, pegou os alicerces temáticos de
Nolan e os traduziu em uma visão cinematográfica marcada pela reverência, pelo
isolamento e pela complexidade moral.
Com a
expansão do universo em Batman vs Superman: A Origem da Justiça (Batman
v Superman: Dawn of Justice, 2016), as ambições narrativas se tornaram
ainda mais audaciosas. Com roteiro escrito por Chris Terrio, roteirista
vencedor do Oscar por Argo. A participação de Terrio trouxe uma
abordagem mais estruturada e literária ao roteiro, recheando o filme de
simbolismo, subtextos políticos e conflitos morais. Batman vs Superman explorou
as consequências do poder sem controle, os perigos do medo e o peso do legado,
posicionando seu confronto central como um embate de ideologias, e não somente
uma luta física. Nolan permaneceu creditado como produtor executivo, com
participação criativa mínima, dando espaço para Snyder e Terrio conduzirem a
narrativa.
Apesar de
dividirem a crítica, esses filmes conquistaram um público massivo. O Homem
de Aço arrecadou mais de 660 milhões de dólares no mundo todo, enquanto Batman
vs Superman ultrapassou os 870 milhões.
Em 2017, enquanto Zack Snyder enfrentava a devastadora perda de sua filha
Autumn por suicídio, os executivos da Warner Bros., incluindo Walter Hamada e
Geoff Johns, aproveitaram-se da tragédia para afastá-lo de Liga da Justiça.
Embora o motivo oficial fosse seu luto, diversas fontes indicam que a decisão
já estava tomada nos bastidores devido à recepção dividida de Batman vs
Superman. Em vez de oferecer apoio, os produtores agiram com frieza e
cálculo, usando o momento de vulnerabilidade extrema de Snyder como pretexto
para substituí-lo e remodelar o filme de acordo com interesses comerciais. Joss
Whedon foi então trazido para refilmar e alterar profundamente a obra,
ignorando a visão autoral de Snyder. A forma como Hamada, Johns e outros
lidaram com a situação foi amplamente criticada como um exemplo flagrante de
oportunismo e desumanidade por parte da indústria, trocando integridade artística
e empatia por controle corporativo e lucro fácil.
O filme Liga da Justiça, finalizado por Joss Whedon após a saída forçada
de Zack Snyder, é amplamente considerado um fracasso artístico e narrativo. O
resultado final é uma obra desconexa, marcada por um tom instável que tenta
mesclar comédia leve com uma trama originalmente densa e épica, resultando em
uma experiência superficial e sem coesão. As refilmagens apressadas, o uso
excessivo de efeitos visuais inacabados e a presença de diálogos forçados e
piadas deslocadas contribuíram para enfraquecer os personagens e banalizar seus
conflitos. A mutilação da visão original de Snyder em favor de um produto mais
“acessível” acabou esvaziando o impacto dramático da história e alienando tanto
o público quanto os fãs. A tentativa de imitar o estilo colorido e infantil da
Marvel, sem compreender sua essência revelou-se desastrosa, deixando Liga da
Justiça de Whedon como um símbolo da interferência corporativa mal
calculada e da mediocridade imposta por comitês executivos.
Dessa forma, a culminação da trilogia de Snyder só veria com Liga da Justiça
de Zack Snyder (Zack Snyder’s Justice League, 2021), um épico de
quatro horas que restaurou sua visão original após sua saída conturbada da
versão lançada nos cinemas em 2017, quando o roteiro de Chris Terrio retornou e
desenvolvendo completamente arcos emocionais mais coerentes, especialmente para
personagens como o Ciborgue e Flash, que haviam sido apagados da versão de
cinema.
O caminho
até esse lançamento é uma história à parte. Quando Snyder se afastou da
produção e a Warner Bros. lançou a versão grotesca de Whedon, surgiu um
movimento popular massivo em resposta, o #ReleaseTheSnyderCut.
Impulsionado por fãs apaixonados, celebridades e pelo próprio Snyder, o
movimento conseguiu convencer a Warner Bros. a financiar e lançar a versão
original na HBO Max. Após assistirem à versão de Whedon, Nolan e a produtora
Deborah Snyder aconselharam Zack a não a ver, considerando a experiência
emocionalmente devastadora. Embora Nolan já não estivesse envolvido
diretamente, ele apoiou Snyder nos bastidores.
Liga da
Justiça de Zack Snyder tornou-se um marco na história do entretenimento, não apenas por sua
qualidade, mas pelo que simbolizou: o poder do engajamento dos fãs, o valor da
integridade criativa e o potencial das plataformas de streaming em resgatar
obras comprometidas. Apesar de não ter estreado nos cinemas, foi o título mais assistido
da HBO Max em seu lançamento e foi amplamente reconhecido como superior à
versão de 2017.
Mais do que
seu conteúdo narrativo, o “Snyderverse” desafiou as convenções do gênero de
super-heróis. Teve a ousadia de levar seus personagens a sério, às vezes até
demais, e os tratou como figuras mitológicas em um mundo moralmente ambíguo. O
Super-Homem foi retratado como um messias relutante; o Batman, como um
vigilante envelhecido e traumatizado em busca de redenção; e Mulher-Maravilha,
Aquaman e Ciborgue ganharam uma dignidade e profundidade mais próximas da
fantasia épica do que da ação convencional.
Embora a
Warner Bros. tenha eventualmente se afastado da rota traçada por Snyder e
seguido uma abordagem mais fragmentada, sua influência permaneceu impregnada no
DNA dos filmes posteriores da DC. Suas escolhas de elenco, o tom e a linguagem
visual moldaram as versões de Aquaman, Flash e principalmente o sucesso Mulher-Maravilha
que o público abraçou esses filmes solo. E talvez o mais importante: os filmes
de Snyder provaram que o gênero de super-heróis pode aspirar à profundidade
temática e à ressonância mitológica, e não apenas ao entretenimento leve e
cheio de piadas.
Em
paralelo, o sucesso estrondoso de crítica e público de Coringa (Joker,
2019), dirigido por Todd Phillips, não apenas surpreendeu o mercado como também
desafiou a lógica dominante dos filmes de super-heróis. Ao invés de seguir a
fórmula padrão das franquias, Phillips apostou numa abordagem sombria,
introspectiva e autoral, explorando temas como doença mental, desigualdade
social e alienação urbana. A narrativa, centrada num personagem perturbado e
tragicamente humano, evocou a linguagem do cinema de autor dos anos 1970, e
encontrou eco entre plateias globais. O tom sombrio, a densidade psicológica e
a estética realista de Coringa remetem diretamente ao estilo visual e
temático cultivado por Zack Snyder no universo DC, especialmente em Batman
vs Superman, onde heróis são retratados como figuras mitológicas inseridas
num mundo brutal e complexo. Ainda que os estilos sejam distintos, ambos
compartilham a ambição de levar os quadrinhos para territórios adultos e
provocativos. Distinto do besteirol típico da Marvel.
A
influência de Martin Scorsese em Coringa é central para compreender sua
profundidade estética e narrativa. Embora ele tenha se afastado formalmente da
produção, Scorsese atuou como mentor de Phillips, e sua obra, em especial Taxi
Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982), moldou diretamente a
construção do protagonista vivido por Joaquin Phoenix. Além disso, a presença de
sua funcionária e produtora Emma Tillinger Koskoff e do amigo Robert De Niro no
elenco e na produção reforçam esse elo criativo, funcionando como ponte viva
entre os dois cineastas. A equipe de Coringa contou com colaboradores
próximos a Scorsese, o que ajudou a transpor para o universo dos quadrinhos a
densidade moral e o realismo cru típicos do cineasta nova-iorquino. É
importante lembrar que o próprio Scorsese tem sido um crítico feroz da Marvel,
argumentando que seus filmes são “parques de diversões”, desprovidos de risco
artístico ou substância dramática. Coringa, nesse contexto, funciona como
uma resposta, um exemplo de que filmes de quadrinhos podem e devem carregar
complexidade e provocar reflexão, quando tratados com liberdade autoral.
Esse mesmo
espírito de ousadia já havia sido cultivado por Zack Snyder em sua visão do
universo DC, ainda que sem o reconhecimento imediato da crítica. Como Phillips,
Snyder sempre tratou o material de origem com seriedade, apostando em dilemas
morais, questões filosóficas e uma estética visual carregada, quase operística.
A rejeição inicial de sua abordagem por parte da Warner e o subsequente sucesso
de Coringa escancararam uma contradição dentro do estúdio: enquanto um
filme sombrio e autoral arrecadava mais de um bilhão de dólares e recebia o
Leão de Ouro em Veneza, além dois Oscars em indicações ao prêmio máxima do
cinema mundial, o mesmo tipo de visão havia sido rejeitada poucos anos antes,
quando vinha de Snyder. Assim, o sucesso de crítica e público de Coringa
reafirmou o valor de uma abordagem adulta aos quadrinhos e, paradoxalmente,
consolidou o legado estético e temático de Zack Snyder como um precursor
subestimado dessa nova fase do cinema baseado em quadrinhos.
O valor do “Snyderverse” reside não apenas em estilo cinematográfico distinto,
mas no que ele representa: a convergência entre visão autoral e espetáculo
blockbuster; o impacto de vozes colaborativas como as de Nolan, Terrio e Goyer;
e o papel crescente das comunidades de fãs na definição do destino das obras
criativas. Seja admirado por sua ambição ou criticado por seus excessos, o
universo DC de Zack Snyder redefiniu o que um épico de super-heróis pode ser, e
deixa um legado que continuará sendo debatido por muitos anos.
- Fabio Marques, 19 de julho de 2025
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