quarta-feira, junho 04, 2025

Quando os Intocáveis viram Código: Uma trilha de luz e sombras


Quando os Intocáveis viram Código: Uma trilha de luz e sombras

Nos anos 80, quando a infância ainda era um território indecifrável, eu tinha uma relação quase obsessiva com o cinema. Era um ritual de luz e sombra que me marcava, rever filmes que falavam de mundos sombrios, onde o mal e o bem dançavam um tango silencioso. Filmes como Guerra nas Estrelas, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Caçadores da Arca Perdida, Carrie: A Estranha e Scarface eram meus companheiros fiéis, personagens que, no escuro da sala, ganhavam vida como fantasmas do meu imaginário.

Brian De Palma, com suas imagens afiadas como navalha, foi o segundo nome que aprendi a associar ao poder do cinema, logo depois de Spielberg, aquele mago das telas. Foi com ele que me perdi e me encontrei no cinema de gangsteres. Em uma tarde qualquer de férias, fui ao cinema ver Quando as Metralhadoras Cospem..., um pastiche de Alan Parker com a jovem Jodie Foster. Aquele filme, uma brincadeira séria com o universo dos mafiosos, me fez mergulhar ainda mais fundo nesse labirinto de metralhadoras, intrigas e violência. Jodie ainda se tornaria um fetiche recorrente desse cinéfilo.

Na televisão, vi os gigantes: O Poderoso Chefão, de Coppola, e Era uma Vez na América, de Leone, com aquelas trilhas sonoras marcantes de Nino Rota e Ennio Morricone, que parecia empurrar o tempo para frente e para trás, entre a glória e a ruína.

Eu gravava esses filmes em VHS, fita após fita, revendo-os como se neles buscasse uma resposta para algo que nem sabia formular. Numa quinta, 26 de abril de 1990, que a memória me marcou de vez. Na sessão especial a TV Globo exibiu Intocáveis, o filme de De Palma sobre Eliot Ness e Al Capone, o duelo imortal entre o bem e o mal na Chicago da Lei Seca. Ali, com quinze anos, senti o peso daquela luta, a trilha sonora grandiosa, que lembrava uma ópera urbana em camera lenta em cenas minuciosamente coreografadas. me fez entender que a batalha era mais profunda do que tiros e metralhadoras. Era uma questão de princípios, de justiça, uma disputa que atravessava décadas.

No ano seguinte, no último ano do colegial, a professora Dalila de Inglês nos desafiou a escrever e atuar numa peça de teatro. Eu e alguns colegas criamos Os Tocáveis, uma comédia pastelão, uma paródia mafiosa onde os mafiosos brigavam pelo controle da venda proibida de Baré Cola, refrigerante emblemático dos anos 80. Vestimos sobretudos, chapéus e metralhadoras de brinquedo, encenamos um banho de “sangue” tão engraçado quanto violento, uma mistura dos estilos de Alan Parker e De Palma. Era o humor numa versão gangster, o tom leve que contrabalançava as trevas que tanto admirávamos.

Pouco mais tarde, na universidade, De Palma perderia espaço para Scorsese, que entrou no meu mundo com Os Bons Companheiros e Cassino, mostrando o lado humano e brutal dos mafiosos. Taxi Driver: Motorista de Táxi, virou um dos meus filmes favoritos, Jodie Foster, com a infância destruída, ali novamente.

Depois de me formar em Ciências da Computação, a vida me levou para outro tipo de luta, a do código, da lógica, da urna eletrônica. Comecei a trabalhar no software da urna para o Tribunal Superior Eleitoral, em 1996, na Unisys, e depois na Procomp, em 1998 e 2000. A Procomp, brasileira, foi comprada em 1999 pela americana Diebold, gigante da área de segurança bancária, e numa palestra corporativa ouvi, de novo, os nomes de Eliot Ness e Al Capone.

Ness, descobri, fizera parte do conselho de diretores da Diebold nos anos 40 e 50, logo depois que deixou a Receita Federal. A lembrança do filme Intocáveis voltou, clara, nítida, com aquele duelo eterno entre o certo e o errado. Como se o projeto da urna eletrônica fosse uma continuação daquela guerra, entre o bem e o mal, a ordem e o caos, a justiça e a corrupção. Depois da missão cumprida no projeto do Voto Eletrônico, fui para indústria de Telecom, deixei um pouco do dia a dia de códigos de programação, mas me mantive próximo ao desenvolvimento de software como líder de equipes e gerente de projeto. Percebi em mim o tipo de liderança que Ness exercia naquele grupo de policiais.

Anos depois, numa viagem a São Francisco, visitei a Ilha de Alcatraz, o cárcere onde Capone foi preso por sonegação fiscal, o palácio de pedra onde a lei mostrava sua face impiedosa. Mais alguns anos, na Filadélfia, pisei no Eastern State Penitentiary, o presídio onde ele cumpriu pena por porte ilegal de armas, um lugar frio e silencioso que parecia carregar a sombra do próprio Capone.

E assim, a história que começou nos filmes, nas fitas VHS, nos teatros improvisados, atravessou minha vida, numa trilha de sombras e luzes, de mafiosos e heróis, onde a luta entre o bem e o mal nunca termina, e onde cada projeto que desenvolvo, cada missão de cumpro, de certa forma, um golpe nessa batalha sem fim.