Quando os
Intocáveis viram Código: Uma trilha de luz e sombras
Nos anos
80, quando a infância ainda era um território indecifrável, eu tinha uma
relação quase obsessiva com o cinema. Era um ritual de luz e sombra que me
marcava, rever filmes que falavam de mundos sombrios, onde o mal e o bem
dançavam um tango silencioso. Filmes como Guerra nas Estrelas, Contatos
Imediatos do Terceiro Grau, Caçadores da Arca Perdida, Carrie: A
Estranha e Scarface eram meus companheiros fiéis, personagens que,
no escuro da sala, ganhavam vida como fantasmas do meu imaginário.
Brian De
Palma, com suas imagens afiadas como navalha, foi o segundo nome que aprendi a
associar ao poder do cinema, logo depois de Spielberg, aquele mago das telas.
Foi com ele que me perdi e me encontrei no cinema de gangsteres. Em uma tarde
qualquer de férias, fui ao cinema ver Quando as Metralhadoras Cospem...,
um pastiche de Alan Parker com a jovem Jodie Foster. Aquele filme, uma
brincadeira séria com o universo dos mafiosos, me fez mergulhar ainda mais
fundo nesse labirinto de metralhadoras, intrigas e violência. Jodie ainda se
tornaria um fetiche recorrente desse cinéfilo.
Na
televisão, vi os gigantes: O Poderoso Chefão, de Coppola, e Era uma
Vez na América, de Leone, com aquelas trilhas sonoras marcantes de Nino
Rota e Ennio Morricone, que parecia empurrar o tempo para frente e para trás,
entre a glória e a ruína.
Eu gravava
esses filmes em VHS, fita após fita, revendo-os como se neles buscasse uma
resposta para algo que nem sabia formular. Numa quinta, 26 de abril de 1990,
que a memória me marcou de vez. Na sessão especial a TV Globo exibiu Intocáveis,
o filme de De Palma sobre Eliot Ness e Al Capone, o duelo imortal entre o bem e
o mal na Chicago da Lei Seca. Ali, com quinze anos, senti o peso daquela luta,
a trilha sonora grandiosa, que lembrava uma ópera urbana em camera lenta em cenas
minuciosamente coreografadas. me fez entender que a batalha era mais profunda
do que tiros e metralhadoras. Era uma questão de princípios, de justiça, uma
disputa que atravessava décadas.
No ano
seguinte, no último ano do colegial, a professora Dalila de Inglês nos desafiou
a escrever e atuar numa peça de teatro. Eu e alguns colegas criamos Os
Tocáveis, uma comédia pastelão, uma paródia mafiosa onde os mafiosos
brigavam pelo controle da venda proibida de Baré Cola, refrigerante emblemático
dos anos 80. Vestimos sobretudos, chapéus e metralhadoras de brinquedo,
encenamos um banho de “sangue” tão engraçado quanto violento, uma mistura dos
estilos de Alan Parker e De Palma. Era o humor numa versão gangster, o tom leve
que contrabalançava as trevas que tanto admirávamos.
Pouco mais
tarde, na universidade, De Palma perderia espaço para Scorsese, que entrou no
meu mundo com Os Bons Companheiros e Cassino, mostrando o lado humano e
brutal dos mafiosos. Taxi Driver: Motorista de Táxi, virou um dos meus
filmes favoritos, Jodie Foster, com a infância destruída,
ali novamente.
Depois de me
formar em Ciências da Computação, a vida me levou para outro tipo de luta, a do
código, da lógica, da urna eletrônica. Comecei a trabalhar no software da urna
para o Tribunal Superior Eleitoral, em 1996, na Unisys, e depois na Procomp, em
1998 e 2000. A Procomp, brasileira, foi comprada em 1999 pela americana Diebold,
gigante da área de segurança bancária, e numa palestra corporativa ouvi, de
novo, os nomes de Eliot Ness e Al Capone.
Ness,
descobri, fizera parte do conselho de diretores da Diebold nos anos 40 e 50,
logo depois que deixou a Receita Federal. A lembrança do filme Intocáveis
voltou, clara, nítida, com aquele duelo eterno entre o certo e o errado. Como
se o projeto da urna eletrônica fosse uma continuação daquela guerra, entre o
bem e o mal, a ordem e o caos, a justiça e a corrupção. Depois da missão cumprida
no projeto do Voto Eletrônico, fui para indústria de Telecom, deixei um pouco do
dia a dia de códigos de programação, mas me mantive próximo ao desenvolvimento
de software como líder de equipes e gerente de projeto. Percebi em mim o tipo
de liderança que Ness exercia naquele grupo de policiais.
Anos depois,
numa viagem a São Francisco, visitei a Ilha de Alcatraz, o cárcere onde Capone
foi preso por sonegação fiscal, o palácio de pedra onde a lei mostrava sua face
impiedosa. Mais alguns anos, na Filadélfia, pisei no Eastern State
Penitentiary, o presídio onde ele cumpriu pena por porte ilegal de armas, um
lugar frio e silencioso que parecia carregar a sombra do próprio Capone.
E assim, a
história que começou nos filmes, nas fitas VHS, nos teatros improvisados,
atravessou minha vida, numa trilha de sombras e luzes, de mafiosos e heróis,
onde a luta entre o bem e o mal nunca termina, e onde cada projeto que
desenvolvo, cada missão de cumpro, de certa forma, um golpe nessa batalha sem
fim.